Flagrantes de como funcionava o esquema
A investigação do repórter Giovane Grizotti começa pelo Rio Grande do Sul. De 2011 até o ano passado, Neuromar Gatto era chefe de gabinete do deputado estadual Diógenes Basêgio, o Doutor Basêgio, do PDT.
Sem medo de mostrar o rosto, Neuromar Gatto revela que funcionários, vários deles fantasmas, devolviam parte do salário ao deputado que os contratou.
Neuromar: Essas pessoas traziam até o gabinete os valores e entregavam a mim, esse valor... Esses valores. E eu, naturalmente, repassava ao deputado esses valores, como consta em gravações.
Grizotti: Você era o arrecadador?
Neuromar: Exato.
O deputado estadual Doutor Basêgio é médico da cidade gaúcha de Passo Fundo e foi reeleito, no ano passado, para o segundo mandato na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Segundo o delator, o próprio deputado controlava quanto cada funcionário tinha que devolver. Uma lista mostra nomes e valores.
Neuromar: São documentos assim, com a letra dele, mostrando R$ 800 mil que ele poderia tirar por ano.
Grizotti: E isso o que diz aí?
Neuromar: Esse aqui é o repasse. São as pessoas que repassavam pra ele num certo período.
Além de documentos, Neuromar gravou flagrantes de como funcionava o esquema de extorsão de assessores e uso de funcionários fantasmas.
Em um vídeo, o assessor Álvaro Ambrós revela o quanto devolve de salário.
Neuromar: Quanto que tu repassa?
Álvaro: Três e pouco é a parte dele. Três e duzentos, três e trezentos.
Três mil e trezentos reais diretamente para o bolso do deputado.
A dona de casa Hedi Vieira era contratada como assessora parlamentar do Doutor Basêgio. Sem saber que estava sendo filmada, ela admitiu que era fantasma.
Grizotti: Não trabalhava na prática?
Hedi: Na prática, não.
E nem ficava com o salário.
Hedi: Eu não recebia dinheiro nenhum.
Grizotti: Mas não era assessora?
Hedi: Assessora só no papel.
Deputado Doutor Basêgio participa da contagem de dinheiro
O publicitário Paulo Marins, responsável pelas campanhas eleitorais do deputado, aparece num vídeo entregando dinheiro para o então chefe de gabinete, Neuromar Gatto. Segundo Neuromar, foi mais uma devolução de salário, dessa vez da mulher de Marins, que também estava empregada na assembleia. O publicitário disse que o dinheiro era uma comissão devida a Gatto.
Neuromar: Eu não sei quanto é.
Marins: é 3-0-0-8.
Neuromar: isso.
Marins: Mil e vinte, mil e trinta.
O número 3-0-0-8 significa R$ 3.008, exatamente o valor do contracheque da mulher do publicitário em setembro de 2013; R$ 1.030 é o valor referente aos dias trabalhados por ela no mês anterior.
Em outro vídeo, a etapa final do esquema. Dentro do gabinete, na Assembleia do Rio Grande do Sul, o deputado Doutor Basêgio participa da contagem do dinheiro devolvido. E ainda reclama do valor.
Neuromar: Amanhã ela passa então R$ 1.500. E aí quinta-feira mais os R$ 300, R$ 305 reais. Eu contei. Tudo em dez reais. Eles só conseguiram sacar em dez reais.
Basêgio: Mas, meu Deus, que pobreza essa gente.
Basêgio: Mil reais?
Neuromar: Não, aí tem mil e quinhentos. Aqui, nesse envelope aqui tem mil e quinhentos reais. Depois aqui tem mais mil e quinhentos.
Um dos maços de dinheiro o deputado separa na hora.
Basêgio: Esse eu vou precisar.
O Fantástico procurou o deputado para responder às acusações.
Basêgio: Não, jamais existiu aqui dentro desse gabinete, qualquer funcionário-fantasma. Existe transparência, existe controle. E nós... Jamais chegou a nós dinheiro de qualquer funcionário. Porque eu não sou falcatrua e tenho uma vida pra preservar.
Distorções nos pagamentos de salários a assessores
A Organização Não-Governamental Transparência Brasil investigou os gastos de todas as assembleias do país e descobriu distorções nos pagamentos de salários a assessores dos deputados.
Um exemplo: no
Distrito Federal, no
Rio de Janeiro, em São Paulo e em
Pernambuco, essa despesa é maior que na Câmara dos Deputados, em Brasília, que só pode ter, no máximo, 25 funcionários por gabinete.
PE: R$ 97.200
SP: R$ 125.996,30
RJ: R$ 171.491
DF: R$ 173.265
CÂMARA: R$ 92.053,20
Veja o absurdo no
Amapá, onde não há limite de funcionários. Os 24 deputados têm, incríveis, 2.653 cargos de confiança. E o tamanho do gabinete...
“Então, um total de 30 metros quadrados, trabalhariam no máximo cinco pessoas”, avalia o engenheiro-civil Carlos Eduardo Domingues da Silva, engenheiro-civil.
Tem deputado com 71 assessores. O porta-voz da Assembleia do Amapá explica que os deputados têm direito a manter assessores em todas as cidades do estado.
Grizotti: São 16 municípios?
Paulo Roberto Melen, consultor legislativo da Assembleia do Amapá: Sim.
Grizotti: Como justificar 71 assessores e como o espaço físico comporta?
Melen: Se eu tivesse cinco assessores em cada município, eu teria quantos?
Grizotti: Mas precisaria cinco assessores?
Melen: Mas se eu tivesse? Se eu tivesse?
Afinal, onde estão os assessores parlamentares do Amapá? Um homem devia trabalhar na assembleia, mas procurou o Ministério Público para contar que na verdade prestava serviços particulares para um deputado.
Grizotti: O senhor não trabalhava no gabinete?
Homem que procurou o MP: Nunca entrei na assembleia. Era nomeado como assessor político e nunca peguei num papel.
Dezenas de funcionários-fantasmas em Alagoas
Esta semana, o Ministério Público vai entrar com uma ação para diminuir os cargos de confiança no Amapá.
“Vamos ir à Justiça, pedindo que o judiciário anule essas contratações ilegais. E nesses casos, logicamente, o Ministério Público irá pedir a devolução dos valores, sim.”, afirma o promotor de Justiça Afonso Guimarães.
Em
Alagoas, dezenas de funcionários-fantasma foram descobertos, no ano passado, pela Controladoria-Geral da União.
“Pessoas humildes foram utilizadas para serem colocadas na folha de salários da Assembleia Legislativa e receberem esse pagamento. Algumas conheciam, sabiam da irregularidade, outras desconheciam essa irregularidade”, observa José William Gomes da Silva, chefe da Controladoria Regional da União em Alagoas.
É o caso de duas irmãs que ganham um salário mínimo por mês trabalhando honestamente numa lavanderia comunitária de Maceió.
Fantástico: Dona Naudiene, a senhora trabalha na Assembleia Legislativa?
Naudiene da Silva Quintino, lavadeira: Nunca. Não sei nem onde é. A única coisa que a gente sabe fazer é lavar roupa.
Fantástico: Consta aqui nos registros que em dois meses a senhora recebeu mais de R$ 25 mil de salário.
Naudiene: Eita. Queria eu. Nunca vi nem tanto dinheiro assim na minha vida.
“Se eu tivesse recebido eu não estava numa vida dessa, que só Deus aqui pra ajudar a gente”, diz a lavadeira Sandra Maria da Silva.
Funcionária que ganhava sem trabalhar foge de repórter
O Ministério Público de Alagoas investiga fraudes que podem chegar a R$ 150 milhões em cinco anos. E o ex-presidente da Assembleia, principal acusado, atualmente é um dos responsáveis por julgar os desvios de dinheiro público.
“O ex-deputado Fernando Tolêdo, que presidia a Assembleia Legislativa envolvido nesses atos ilícitos comprovadamente, infelizmente foi premiado. Como recompensa, foi nomeado para ser conselheiro do Tribunal de Contas”, conta o procurador-geral de Justiça de Alagoas Sérgio Jucá.
“Eu estando inocente, como tenho a consciência da tramitação, eu vou julgar isso com muita isenção”, declara Fernando Tolêdo, conselheiro do TCE, ex-presidente da Assembleia.
As fraudes se espalham pelo país. O mesmíssimo esquema foi descoberto em Goiás, onde existem 2,4 mil cargos de confiança e 41 deputados.
“Sem precisar prestar o expediente, a pessoa, era oferecida a vantagem, dava o nome, era contratada na assembleia e com a obrigação de uma vez no mês, em algum local da cidade, ser devolvido o dinheiro”, afirma Lauro Nogueira, procurador-geral de Justiça de Goiás.
Uma dessas funcionárias que ganhavam sem trabalhar é a manicure Mércia Adriana Dias. Em vez de trabalhar no gabinete, ela cuidava de seu salão de beleza.
Ao ser abordada pelo repórter Giovani Grizotti, ela não quis dar explicações... Abandonou os clientes e correu.
Fantasma que veste batina e reza missas
Ainda em Goiás, tem fantasma que veste batina e reza missas - bem longe do gabinete onde deveria trabalhar. É o padre Luiz Augusto, funcionário da assembleia desde 1980.
“Fantasma não tem carne e osso como eu tenho”, diz o padre Luiz Augusto Ferreira da Silva.
Esta semana, o padre foi acusado formalmente pelo Ministério Público de ter recebido mais de R$ 3 milhões de salário ao longo de 20 anos, sem trabalhar.
“Eu mesmo não acreditei. Tive dificuldade de acreditar porque achei absolutamente condenável do ponto de vista ético esta postura por parte de quem prega a ética como um padre da Igreja Católica”, diz Fernando Krebs, da Promotoria de Defesa do Patrimônio Público.
O padre se defende dizendo que usa o salário de R$ 7,3 mil em obras sociais.
“E eu pago para pessoas doentes que eu cuido. Sobra, então, R$ 6,3 mil pra comprar algum alimento pra eles ainda. Então não tem nada de fantasma, não tem nada ilegal nessa situação”, defende-se o padre.
O Ministério Público pediu à Justiça a devolução dos salários e também acusou ex-presidentes da Assembleia Legislativa de Goiás por permitir que o padre recebesse sem trabalhar.
“Colocamos o ponto eletrônico, o crachá funcional pra todos os servidores, o portal da transparência, o conselho de gestão da frequência e da folha de pagamento”, afirma Helio de Souza, presidente da Assembleia Legislativa de Goiás.
Festival de notas frias
Outro foco de desvio de dinheiro público envolve a chamada verba indenizatória, que serve para reembolsar as despesas dos deputados.
“Em algumas assembleias não é necessário sequer apresentar comprovante fiscal da verba indenizatória, que devia ser para indenizar um gasto já efetuado”, acusa Natalia Paiva, diretora-executiva da Transparência Brasil.
Em muitas assembleias do Brasil é um festival de notas frias, empresas de fachada, serviços nunca prestados. Veja esse exemplo do Amapá: a dona da agência de viagens, que não está envolvida no esquema, não sabe como notas fiscais da empresa dela foram parar na prestação de contas de cinco deputados.
Fantástico: A senhora reconhece essas notas fiscais como tendo sido preenchidas pela senhora?
Neucila Martins Nery, empresária: Não. De forma alguma.
Promotores do Amapá investigam fraudes que, em apenas dois anos, podem passar dos R$ 50 milhões. Até empresa em nome de morto foi usada para deputado embolsar verba que deveria ser usada para locação de veículos.
“Ele morreu no dia 14. Tem uma nota que foi tirada 15 dias depois da morte dele. Começo de janeiro. O meu irmão já tava morto não tinha como assinar. Como é que um morto vai assinar?”, disse uma pessoa não quis se identificar.
Mas mesmo quando as notas não são frias, a verba pode ser fraudada.
Marcadores de quilometragem são fraudados no RS
No Rio Grande do Sul, os 55 deputados receberam mais de R$ 4,5 milhões para rodar mais de 8 milhões de quilômetros, o equivalente a 10 viagens de ida e volta até a lua. Parte do valor a ser pago aos deputados é controlado pelo medidor de quilometragem dos carros. O ex-chefe de gabinete, que você viu no começo da reportagem, conta que o marcador de vários carros é fraudado em oficinas mecânicas.
Grizotti: Quantas vezes você levou o carro pra fazer a adulteração?
Neuromar: No mínimo umas seis, sete vezes. Então, aí você joga pra cima essa quilometragem lá.
A pedido do Fantástico, ele foi até a oficina onde tudo acontece. Repare que, antes da adulteração, o carro marca 75 mil quilômetros. Na oficina, Neuromar pede ao mecânico para aumentar o medidor em 5 mil quilômetros. Enquanto trabalha, o mecânico confirma que a prática é comum. Minutos depois, o resultado no painel: 80 mil quilômetros.
Grizotti: Alguma vez já aumentou a quilometragem de carro aqui?
Mecânico: Também não.
“Isso é uma vergonha. E quem cometeu esse tipo de crime, sendo comprovado, tem que pagar por isso”, declara Edson Brum, presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.