Que dureza, deve mesmo estar pensando o velho Machado, lá do alto de seu mausoléu invisível, com os óculos repousando sobre a ponta do nariz etéreo, enquanto acompanha, entre um suspiro e outro, os nomes recém-sorteados, ou melhor, indicados para as cadeiras outrora ocupadas por escritores. Sim, escritores, lembra-te disso, leitor? Gente que escrevia com vocação de ferida e beleza, não com slogans reciclados de rede social.
Machado, se ainda estivesse entre nós, talvez preferisse morrer de novo. Porque o que se vê da chamada “Academia Brasileira de Letras” hoje, já não tem tanto de “letras”, e muito menos de “brasileira”, quanto tem de performance, de liturgia progressista, de autofagia intelectual. É como se a genialidade literária tivesse sido substituída por uma cartilha, e o ofício da escrita, por um atestado ideológico assinado em cartório militante.
A casa fundada por aquele que soube rir da própria desgraça, narrar o Brasil com ironia de bisturi e alma de filósofo, hoje abrigaria, com toda solenidade e nenhuma vergonha, personagens que, se estivessem em seus romances, seriam caricaturas, o engajado afetado, a escritora do ressentimento automático, o acadêmico de redes que escreve mal, mas se posiciona bem. E por “bem”, entenda-se, conforme o algoritmo.
Machado, que fazia da ambiguidade um instrumento de revelação, agora observa, atônito, um tempo em que a ambiguidade virou crime, e o único estilo aceito é o da obviedade uivante. O que era arte de sugerir virou panfleto explícito. E a Academia, aquela que um dia se ocupava da imortalidade da palavra, tornou-se abrigo de vaidades sonoras, de ativismos de ocasião, de egos inflamados e frágeis, cuja única obra relevante é o próprio currículo.
E que currículo, recheado de participações em eventos, de textos opinativos em portais de indignação crônica, de coletâneas lançadas por editoras que não sabem distinguir aforismo de autocomiseração. Escrever bem, para quê? O mérito agora é saber ocupar o espaço certo no discurso correto, dizer as palavras mágicas da seita do momento, pertencer à tribo, acenar ao totem. O estilo morreu sufocado pela etiqueta identitária.
Machado, com sua pena envenenada de lucidez, deve assistir ao espetáculo com aquele sorriso torto de ironia amarga. Não porque fosse reacionário, mas porque era lúcido. E lucidez, hoje, parece coisa fora de moda, talvez até perigosa. Sua literatura, que expunha a alma humana em toda sua torpeza e ternura, daria lugar, hoje, a discursos redentores, a personagens que não erram, pois representam causas, a narrativas em que o bem e o mal já vêm prontos, como lanche embalado.
Que dureza, sim. Porque a imortalidade, Machado sabe, não se garante por eleição. A verdadeira eternidade de um escritor não está na cadeira que ocupa, mas no incômodo que provoca, na linguagem que resiste ao tempo, no espelho que oferece à sociedade, mesmo que ela o quebre. E hoje, quebraram não o espelho, mas o próprio ofício. Jogaram fora a arte de escrever, e puseram no pedestal o direito de estar certo.
É isso, querido Machado. Do além, continue assistindo, mas feche os olhos de vez em quando. Há certas cenas que nem mesmo a ironia é capaz de redimir.
Por: Oliver Harden
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