Pesquisador também fala sobre sua trajetória acadêmica
Poliglota e italianista de vocação itinerante, Peter Burke é um dos
historiadores mais renomados do mundo, doutor Honoris Causa pelas
Universidades de Lund, Copenhague e Bucareste. Mesmo assim transmite ser
uma pessoa simples, amena e próxima. Sua produção científica inclui
mais de 23 livros, entre os quais se ressaltam importantes trabalhos
sobre a Idade Moderna e o Renascimento, e pesquisas sobre teoria e
metodologia da história cultural. Um entusiasta ilustrado que evita
repetir paisagens e procura levar suas ideias a todos os lugares
possíveis. Este foi um dos motivos que o trouxe ao Brasil, país de
nascimento de sua esposa, a também historiadora Maria Lucia
Pallares-Burke. Pausado e sorridente, preferiu conversar em português.
Peter Burke contou quando começou seu interesse por conhecer diferentes línguas
(Foto: Globo/Juan Crisafulli)
Globo Universidade – Quem é Peter Burke? Como foi sua formação intelectual?
Peter Burke –
Eu estudei em um colégio de jesuítas (St John's) e depois fui para
Oxford para continuar com meus estudos em História. Lá, meu mestre
principal foi Hugh Trevor-Roper. Naquela época, ele era Reader
Professor. Sem dúvida, uma figura muito controversa, sobretudo quando
falava de Hitler. Mas nós nunca falamos sobre esse tema. Nunca falamos
sobre Hitler. As nossas conversas sempre foram sobre a história dos
séculos XVI e XVII. Antes de acabar meu doutorado, decidi ir para a
Escola de Estudos Europeus da Universidade de Sussex, como Assistant
Lecturer. Essa mudança foi super interessante para mim porque deixei de
trabalhar na universidade mais antiga da Inglaterra, Oxford, para
trabalhar na mais nova. Uma experiência que foi muito rica e que, depois
de 16 anos, se tornou menos interessante. Foi aí que decidi ir para
Cambridge, onde fiquei durante muito tempo e, ainda estou, apesar de ser
aposentado. Atualmente, moro nesta cidade e continuo fazendo pesquisa
na mesma faculdade. De vez em quando, dou seminários também.
GU – Quando começou seu interesse por conhecer diferentes línguas, diferentes estilos de vida, diferentes mentalidades?
PB –
Meu interesse pelas diferentes línguas começou muito cedo porque meu
pai era tradutor. Então, em casa, eu tinha contato com várias línguas,
francês e alemão sobretudo. Mas sempre que me perguntam pelos meus
interesses, eu sugiro conversar com o meu psicanalista. O único problema
é que eu não tenho psicanalista (risos).
GU – Sua passagem pelo exército teve alguma influência?
PB –
Quando era jovem, me enviaram para Singapura como membro do Royal Corps
of Signals, para um regimento de pessoas locais com muitos malaios,
índios e chineses. Só me dei conta desta influência anos depois. Além
disso, fiz Antropologia sem saber, sem perceber. É que estive submerso
em um ambiente muito diferente ao meu durante mais de um ano, observando
tudo e até escrevendo notas de campo num caderno.
GU – Que pessoas têm sido suas companheiras intelectuais ao longo do caminho?
PB –
Três, sobretudo porque colaborei muitas vezes com eles. Infelizmente,
todos os três faleceram muito cedo. Em primeiro lugar, Ralf Samuel, que
foi um dos fundadores do History Workshop, um movimento que estimulava o
desenvolvimento da história from bellow. Depois, devo mencionar Bob
Scribner, que foi meu colega em Cambridge. Juntos, criamos dois cursos:
um sobre Antropologia Histórica e outro sobre História e Imagem. E
finalmente, Roy Porter, o mais jovem de todos e com quem colaborei em
vários volumes sobre História Social da Língua, entre muitas outras
coisas.
GU – Quando e como você abraça as ideias da Escola dos Anais?
PB – Comecei
a ler a produção científica de Fernand Braudel quando era aluno de
graduação, mas foi na época em que fiz pós-graduação que fiquei seduzido
pelas ideias da Escola dos Anais. Naquele tempo, por sorte, tive muitas
conversas com um grande amigo, um equatoriano chamado Juan Maiguashca
que tinha estudado em Paris com Pierre Chaunnu. Falando com Juan,
comecei a conhecer mais profundamente as propostas da Escola dos Anais.
Em nossas conversas, sempre debatíamos sobre o estilo francês de fazer
história. Juan é ainda meu amigo. Recentemente, fui a Quito ministrar um
curso sobre historiografia com ele. Algo muito interessante quando se
faz pela primeira vez, depois de 50 anos de amizade.
GU – Qual é o legado mais importante dessa Escola de pensamentos?
PB – A
ideia de história total. A ideia da história do mundo todo. A ideia de
história de todo tipo de atividade humana. Sou um entusiasta do legado
da Escola dos Anais, basicamente pelo estudo da história a partir do
conceito da longa duração, que nos permite observar nossa localização
dentro dos processos sociais. Embora deva ressaltar que, aqui no Brasil,
Gilberto Freire, de forma independente, já tinha praticado
anteriormente esse tipo de abordagem, mas com um toque sensual.
O historiador ministrou uma palestra no III Conitec (Foto: Globo/Juan Crisafulli)
GU – Como se deve ler sua obra? Você mudou de ideia do que propôs em suas primeiras publicações?
PB – Acho que tenho muitas ideias novas, mas não abandono as velhas.
GU – Como os processos globalizantes estão mudando a história
escrita? Você acha que estamos caminhando na direção de uma história sob
medida?
PB – Estão acontecendo grandes
mudanças nos últimos 40 ou 50 anos. Agora, existe mais interesse por
escrever uma história global. Mas é sempre assim: os problemas do
presente sempre afetam o olhar do passado.
GU – Qual é a função do historiador no século XXI?
PB – A mesma de sempre: ajudar as pessoas a se colocarem dentro da história, porque estamos vivendo a história em cada momento.
GU – Você está casado com uma historiadora brasileira. Acompanha o momento político e social do país?
PB – De
longe. A situação sócio-política brasileira não é fácil de compreender e
muito menos para um inglês. Estou acostumado com o sistema de dois ou
três partidos políticos (risos). Aqui tem tantos que, às vezes, tenho a
sensação de ficar perdido (risos).
GU – Como você acha que será escrita a história da atualidade brasileira?
PB –
Não penso que será uma questão muito complexa, embora escrever a
história sempre represente um desafio. O importante é conseguir enxergar
os fatos com olhos de historiador. Mas esta é uma recomendação válida
para pesquisadores e estudantes de qualquer país, sejam da Inglaterra ou
do Brasil.