Cem anos antes do Coronavirus o mundo enfrentou uma pandemia, a gripe espanhola, que matou mais de 20 milhões de pessoas. Em Manaus o vírus chegou de navio. Morreram 858 pessoas. O governador do Amazonas, que era médico, fez os registros abaixo.
De agosto de 1918 a junho de 1919, o mundo foi assolado pela gripe espanhola, em cujo rastro entre 20 e 40 milhões de pessoas morreram, duas a quatro vezes mais que na primeira guerra mundial. Ao Brasil, a epidemia veio de navio, aportando, primeiro, no Recife, em setembro. O Norte foi atingido um mês depois. Fortemente: em Belém, o número de casos fatais alcançou 575; em Manaus, 858 pessoas foram mortas pela doença. Uma tragédia de vastas proporções.
O Instituto Benjamin Constant foi um das últimos lugares atingidos pela gripe espanhola. Caíram doentes 143 alunas e sete irmãs religiosas, mas não houve vítimas fatais.
Era governador do Amazonas o médico Pedro de Alcântara Bacellar. Ele deixou à posteridade impactante relatório sobre os estragos causados pela doença. Eis um resumo do documento.
A 22 de outubro (de 1918), passou por Manaus o navio S. Salvador, vindo do Pará, do qual desembarcaram pessoas gripadas. Ainda de Belém, entrou, a 24, o Valparaíso, com 17 enfermos. Dada a existência de casos ambulatoriais, foram suspensos os ensaios no Teatro Amazonas e, nos dias seguintes, as diversões em outros lugares, tornando-se cada dia mais aflitiva nossa situação. Foram, então, prestados os primeiros socorros à população, em grande parte, desprovida de recursos e, na sua generalidade, tomada de pânico pela propagação assombrosa da doença.
Como uma rajada, a investida do mal varria a cidade. Deixou de ser feita a comemoração aos mortos; adiaram-se os cultos religiosos; à Santa Casa não foi mais possível admitir gripados. Instalaram-se postos sanitários da Cachoeirinha, Vila Municipal, São Raimundo e Vila Barroso. O número de doentes ia avultando diariamente. A 7 de novembro, o desenvolvimento da epidemia já era assustador. Desorganizaram-se os serviços; por toda parte, a desolação, o pavor e o luto.
A 13 de novembro, a Associação Comercial fez um apelo a todas as classes para o auxílio à população. Organizou-se um comitê que instalou postos na capital. Fecharam-se as casas comerciais, os veículos deixaram de circular, e houve dificuldade no transporte de cadáveres, sendo preciso que o governo contratasse caminhões para esse trabalho e providenciasse os enterramentos. Mas, os obreiros da cruzada iam caindo também, atacados do mal. A classe médica, abnegada e heroica, socorria os atingidos pelo flagelo, mesmo desfalcada de elementos que a epidemia prostrara.
Naquele mesmo mês, a gripe atingiria sua maior intensidade. Doloroso momento; doloroso e indescritível. O Estado forneceu, além das receitas aviadas nas farmácias da capital à população pobre, a distribuição domiciliar de dietas e medicamentos. Expandia-se, por esta forma, o trabalho já iniciado pela Diretoria do Serviço Sanitário. Além disso, as medidas de socorro foram estendidas ao Interior. Para todos os municípios foram remetidas ambulâncias, sendo postos auxílios monetários à disposição das intendências, para distribuição de dietas e medicamentos.
O estoque de medicamentos esgotou-se, nesse tempo, sendo, então, publicadas pelo governo informações sobre o aproveitamento de plantas de nossa flora no tratamento da influenza. Boletins contendo medidas preliminares para a cura da doença foram distribuídos pelo interior. Quase todo o funcionalismo público sofreu o ataque da pandemia.
Em 6 de dezembro, chegávamos à quinta semana angustiosa e de incomparáveis provações. Cessara, entretanto, desde o dia 3, o ruído terrificante e sinistro dos caminhões se dirigindo para o cemitério. A epidemia declinava, diminuía o terror. Em 31 de dezembro, a epidemia foi considerada extinta na cidade.
O trânsito direto de navios de Belém ao território do Acre, sem obediência às prescrições exigidas, veio, porém, mudar a face das nossas condições sanitárias. Assim, o hospital flutuante Santa Bárbara, que havia sido fechado em 10 de janeiro, teve de ser reaberto em 11 de fevereiro, em virtude da chegada de gripados procedentes do Acre. Em 15 de março, entretanto, o número de doentes nos hospitais flutuantes havia se reduzido sensivelmente. A 5 de abril, os serviços do último desses hospitais de emergência, funcionando no vapor Marapatá, deixaram de ser necessários.
Devido, ainda, à chegada de enfermos do interior do Estado e do território do Acre, reapareceram, depois, nesta capital, alguns casos e a 8 de março irrompeu a moléstia no Instituto Benjamin Constant, que permanecera imune até então. Foram atacadas 143 educandas e sete irmãs religiosas, não se verificando óbito algum. Em maio e junho, houve casos no interior e em Manaus, mas, neste momento (julho de 1919) parece extinta a gripe pandêmica, em todo o território do Estado, após o ciclo devastador de sua apavorante duração.
(Fonte: Mensagem lida perante a Assembleia Legislativa na abertura da primeira sessão ordinária da décima legislatura, pelo Exmo, Sr. Dr. Pedro de Alcântara Bacellar, governador do Estado, a 10 de julho de 1919. Disponível na internet em Center for Research Libraries / Brazilian Government Documents)
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